terça-feira, janeiro 03, 2012

Opinião da minoria como "opinião pública"?


O sociólogo Pierre Bourdieu, em um curso dado no Collège de France* en 1990 explica como o discurso de uma minoria se transforma em "opinião pública". O texto foi publicado em janeiro de 2012 na edição nº694 do jornal Le Monde Diplomatique. Segue um resumo traduzido do texto integral.
"Um homem oficial é um ventríloco que fala em nome do Estado: ele toma uma postura oficial - deveria-se descrever a 'mise en scène' oficial - , ele fala em favor e no lugar do grupo ao qual ele se dirige, ele fala para e no lugar de todos, ele fala como representante do universal".
Chegamos à noção moderna de opinião pública. O que é essa opinião pública que invoca os criadores de direito das sociedades modernas, das sociedades nas quais o direito existe? É tacitamente a opinião de todos, da maioria ou daqueles que contam, aqueles que são dignos de ter uma opinião. Eu penso que a definição patente numa sociedade que pretende ser democrática, sabendo que a opinião oficial é a opinião de todos, esconde uma definição latente, ou seja, a opinião pública é a opinião daqueles que são dignos de ter uma opinião. Há um tipo de definição censiária da opinião pública como opinião esclarecida, como opinião digna deste nome.
A lógica das comissões oficiais é de criar un grupo que constitui todos os signos exteriores socialmente reconhecidos e reconhecíveis, a capacidade de expressar a opinião digna de ser exposta, e tudo conforme as normas. Um dos critérios tácitos mais importantes na seleção dos membros da comissão, en particular de seu presidente, é a intuição que os responsáveis da composição da comissão têm de que a pessoa em questão conhece as regras do universo burocrático e as reconhece: dito de uma outra forma, qualquer um que sabe jogar o jogo da comissão de maneira legítima, aquela que vai além das regras do jogo, que legitima o jogo; não se está jamais tanto dentro do jogo quando não se está além dele. Em todo jogo, há regras e o fair-play. Sobre o homem kabyle**, ou do mundo intelectual, eu empreguei a fórmula: a excelência, na maior pate das sociedades, é a arte de jogar com as regras do jogo, fazendo deste jogo a regra de uma homenagem suprema ao jogo. O transgressor controlado se opõe a tudo o que é herético.
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A opinião pública é sempre uma espécie de dupla realidade. É tudo o que não se pode invocar quando se quer legitimar algo sobre o terreno não constituído. Quando se diz ' Há uma vida jurídica' (expressão extraordinária) a propósito da eutanásia ou dos bebês de proveta, convoca-se pessoas que vão trabalhar com toda sua autoridade.
Dominique Memmi descreve um comitê de ética [sobre a procriação artificial] com uma composição de membros disparates - psicólogos, sociólogos, mulheres, feministas, arcebispos, rabinos, intelectuais etc - que têm o objetivo comum de transformar uma soma de dialetos éticos em um discurso universal que vai ser compilado num discurso jurídico, ou seja, que vai dar uma solução a um problema difícil que incomoda a sociedade - legalizar as mães de aluguel, por exemplo. Se trabalha-se sobre esse gênero de situação, deve-se evocar uma opinião pública. No contexto, a função nas pesquisas de opinião se compreende muito bem. Dizer "as pesquisas estão conosco" é o equivalente de "Deus está conosco" em um outro contexto.
Em relação à pena de morte, algumas vezes a opinião esclarecida é contra, mas as pesquisas são a favor. O que fazer? Constitui-se uma comissão. A comissão constitui uma opinião pública esclarecida que vai instituir a opinião esclarecida como opinião legítima em nome da opinião pública - que fora diz o contrário ou não pensa nada a respeito. Uma das propriedades da pesquisas de opinião consiste a fazer perguntas às pessoas que elas não se fazem sobre problemas que elas não pensam, é de fazer deslizar respostas a problemas que elas não questionaram, então é uma forma de impor respostas...é o fato de impor a todos questões que se fazem a 'opinião esclarecida' e, deste modo, produzir respostas de todos sobre os problemas que se apresentam a alguns, ou seja, dar respostas esclarecidas que são produzidas pela pergunta: fez-se perguntas às pessoas que não existiam para elas naquele momento, esta é a questão.
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Percy Schramm mostrou como as cerimônias sagradas eram a transferência, na ordem política, das cerimônias religiosas. Se o ceremonial religioso pode transferir-se também facilmente nas cerimônias políticas através das cerimônias sagradas, é porque se tratam, nos dois casos, de fazer acreditar que há um fundamento no discurso que não aparece como autofundador, legítimo, universal, e porque há a teatralisação - no sentido de evocação mágica de bruxaria - do grupo unido e que consente o discurso que o une. É de onde vem o discurso jurídico. O historiador inglês E.P. Thompson insistiu sobre o papel do teatro jurídico no século XVIII na Inglaterra - as perucas etc - que não pode se compreender totalmente se não se vê que não se trata de simples aparêcia, segundo Pascal, que vinha acrescentar: ele é constitutivo do ato jurídico...Se fala sempre de reformar a linguagem jurídica, sem jamais fazê-lo porque é a última vestimenta: os reis nus não são mais carismáticos.
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Os escândalos políticos são a crença política de que todo mundo age de má fé, a crença se uma má fé coletiva no sentido sartriano: um jogo no qual todo mundo se mente e mentem a outros sabendo que eles se mentem. É isso, o oficial...
Pierre Bourdieu, Le Monde Diplomatique, janeiro de 2012.
(tradução livre)

*texto extraído de Sur l'État. Cours au Collège de France, 1989-1992, Raisons d'agir. Seuil, Paris, 2012.
**kabyle: Nascido na região kabyle na Argélia, norte da África. (Région de l'Algérie, Pays du Maghreb, dans le bassin méditérranean)

La fabrique des débats publics*


Le Monde Diplomatique a publié ce mois-ci (janvier 2012) le texte du sociologue Pierre Bordieu dans le cours sur l'État donné en 1990 au Collège de France. Bourdieu démontre que d'une cotê on a une situation économique et sociale inouï, de l'autre, un débat public mutilé, réduit à une alternative entre austerité de droite et rigueur de gauche. L'auteur démontre comment une opinion d'une minorité se transforme en "opinion publique". Lisez le texte complet en français.
*Source: Le Monde Diplomatique.